segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Mil Novecentos e Oitenta e Quatro

O livro de George Orwell é inequivocamente inspirado pelas ditaduras comunistas. Pacheco Pereira considera irónico que hoje se associe o livro mais ao capitalismo tecnocrático do que ao comunismo. Mas será assim tão absurda essa associação?
Nos países ocidentais os cidadãos também podem ser vigiados a todo o instante, de modo ainda mais insidioso do que na Oceânia; talvez ainda não o sejam hoje, mas podem vir a sê-lo a todo o momento: a infraestrutura existe, e aperfeiçoa-se ainda mais a cada ano que passa. Também no nosso mundo há nações que inventam guerras contra inimigos imaginários para distraírem os cidadãos dos problemas reais. Também no mundo ocidental a verdade e o passado são constantemente reescritos, ou dissimulados entre mentiras: a verdade é escondida a um ritmo cem vezes mais rápido do que o da sua eventual redescoberta, por isso, na prática, ela fica irrecuperavelmente perdida. Também o mundo ocidental se orienta todo para a perpétua busca de um objectivo deificado: talvez não o Poder como na Oceânia, mas o Lucro. Também aqui as pessoas são esvaziadas de tudo o que as define como seres humanos, para que se tornem instrumentos ao serviço daquele objectivo deificado. Também aqui os indivíduos se transformam em máquinas insensíveis quando ascendem ao poder. E também aqui o espírito crítico é deliberadamente assassinado pelas classes dominantes.
A única diferença significativa, talvez, é que a sociedade ocidental encoraja a sexualidade e a perversão em vez de as castrar; mas a respeito disso, poderá dizer-se que a realidade foi mais longe do que a ficção: as classes dominantes ocidentais perceberam que a sexualidade é ainda mais eficaz do que o ódio no entorpecimento da consciência cidadã.

É angustiante acompanhar, ao longo deste livro, o processo de desumanização de Winston Smith. É uma longa e perversa caminhada sem esperança. Tudo lhe é arrancado: no início os cabelos, os dentes, a carne; depois, a memória e a noção de verdadeiro e falso; finalmente, a capacidade de amar e a própria identidade. Com ele morre o último ser humano; o mundo foi então definitivamente conquistado por um novo ser vivo, difuso e tentacular, que se protege e eterniza: o Poder. A derrota do último ser humano é perturbadora e profundamente triste; é como se o Sol se apagasse e a Terra mergulhasse numa escuridão eterna. Porque a chama da humanidade não nasce espontaneamente: só sobrevive passando de um indivíduo para outro; uma vez extinta em todos os indivíduos, jamais renascerá.

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