sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Querem-nos incultos e dóceis

Mário de Carvalho, Lido e Relido (TSF), 2008-12-11, 29'09'':
  • João Paulo Baltazar (JPB): Os jovens estão a ser afastados da cultura clássica?
  • Mário de Carvalho (MC): Sabe que às vezes me dá a impressão de que há um desígnio que leva a cortar a memória -- a uma ablação da memória -- como se, para além do instante que estamos a viver, enfim, nos últimos momentos das nossas próprias vidas, não houvesse nada. Como se por exemplo a nossa literatura não fosse constituída sobre uma espessura. Como se estes autores -- como por exemplo Correia Garção -- não estivessem também ainda dentro da nossa poesia. Parece que tudo é inventado no momento, que tudo é feito agora para consumir rapidamente. Portanto, todo o nosso passado -- que são 900 anos, ao fim e ao cabo, praticamente -- de literatura... tudo isto é omitido. Eu não percebo porquê. Talvez seja com o objectivo de criar consumidores dóceis. A literatura interroga, e forma cidadãos, e as pessoas talvez fiquem mais abertas e há mais dificuldade em manipulá-las. Se queremos cidadãos dóceis, cortar-lhes as referências culturais é um bom princípio para termos gente que possa ser facilmente manipulada. Eu não sei se esta ablação da memoria não tem muito que ver com a tentativa de transformar as pessoas em consumidores, mais em consumidores do que em cidadãos, e se não há interesses instalados e sempre acolitados por gente a nível do poder -- e não só, e da propaganda -- que procuram este efeito.

Maria do Carmo Vieira,
Lido e Relido (TSF), 2009-04-30:
  • João Paulo Baltazar (JPB), 00'00'': Era uma vez uma professora que gostava de livros, da escola e dos alunos. Uma professora que resolveu dizer, em voz alta, que não -- que não concordava com o facilitismo dos programas, com a falta de exigência; que não queria o café de Pessoa fechado ou a casa do poeta em Campo de Ourique desfeita em ruínas. Maria do Carmo Vieira é professora do Ensino Secundário. Defende o valor dos clássicos como Séneca (...).
  • Maria do Carmo Vieira (MCV), 02'07'': Quando eu tenho alunos que me chegam à escola pouco habituados a ler, sem qualquer audição de música clássica (...), eu acho que o meu papel é mesmo acrescentar mais alguma coisa a esses alunos. (...) Nós não podemos "respeitar o discurso que eles trazem de casa" como diz o Ministério, nós temos que ultrapassar esse discurso, e daí o meu objectivo em acrescentar o máximo. (...) Eles estão aqui para dizer que, quando nós lhes pedimos exigência, eles respondem.
  • JPB: Não receia que lhe chamem elitista, com essa abordagem?
  • MCV: Claro, claro, o Ministério chamou-me elitista. Mas elitistas -- foi isso que eu lhes disse -- são eles. E então na escola em que eu lecciono, a maior parte dos alunos pertence a uma classe muito fragilizada, e financeiramente sem grandes recursos. Por isso, se não for a escola a acrescentar-lhes qualquer coisa, quem o faz? E esses sim, vão ser aqueles que vão obedecer. No fundo é isso: há uns para mandar e outros para obedecer, por isso esses que obedecem nem devem pensar nem devem ter cultura. Isso sim, é um CRIME! Isso é um crime...
  • JPB: Esse seu olhar crítico está presente neste livro. Escreve por exemplo: "Infelizmente continuamos, sob orientações institucionais, a menorizar os nossos alunos, a atrofiar as suas capacidades, a negar-lhes a cultura a que têm direito. Esta atitude oficializada ofende a nobreza da Pedagogia, em nome da qual se permitem as mudanças mais absurdas e atentatórias da inteligência e da sensibilidade de professores e alunos de todos os níveis de ensino." (...)
  • JPB, 18'50'': Maria do Carmo Vieira que agora coloca na mesa (...) a memória de um sobrevivente do Holocausto (...).
  • MCV: Este livro é mesmo muito importante. Além disso, não há aluno meu que não o conheça (...). E sobretudo por isto: porque, quando há poucos meses se falou no Holocausto e se falou nas experiências com seres humanos (...) houve um aluno que reagiu desta maneira: "Ah, professora, isso realmente é terrível, mas... a Ciência sempre evoluíu com essas experiências." Quando alguém adolescente nos diz isto, a sua sensibilidade, o seu pensamento, estão muito pouco trabalhados, há muito pouca reflexão. Eu acho que o Primo Levi, precisamente pelo modo como nos apresenta este livro (...), ele exige que nós reflictamos sobre isto! E é isso que eu quero fazer aos meus alunos: é uma exigência! Eles têm que reflectir sobre isto, porque isto não se pode repetir!
  • JPB: É impossível ficar indiferente a esta obra, "Se Isto É um Homem". (...)
  • JPB, 23'52'': Maria do Carmo Vieira, tocada pela força e pela beleza destas palavras de Primo Levi (...). É habitual isto acontecer-lhe, sentir-se assim tocada pela força destas palavras?
  • MCV: A mim, e aos alunos. (...) Agora sobretudo, porque desde que me recusei a dar os novos programas, fui para os horários da noite, e os meus alunos eram estudantes-trabalhadores (...) alguns deles choraram (...).

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